Gambás e cobras: a batalha silenciosa da natureza que ocorre há mais de 100 milhões de anos
13/03/2025
(Foto: Reprodução) Resistentes ao veneno das serpentes, os gambás não apenas predam cobras, mas também desempenham um papel essencial no equilíbrio dos ecossistemas no controle de pragas e na regeneração das florestas. Gambás são imunes à peçonha das cobras e são predadores naturais desses animais
Hugo Vinicius de Sousa Albuquerque Filho/iNaturalist
Na guerra “invisível” dos ecossistemas, um pequeno marsupial se destaca como um verdadeiro guerreiro: o gambá. Também conhecido como timbu, saruê, cassaco e mucura, esse animal divide seu território com um de seus adversários mais antigos: as serpentes. Ambos percorrem a terra desde o período Cretáceo, há mais de 100 milhões de anos, e, como são criaturas noturnas em busca de alimento, seus caminhos inevitavelmente se cruzam.
No entanto, ao longo da evolução, os gambás desenvolveram uma impressionante resistência ao veneno de algumas das cobras mais temidas, como jararacas e cascavéis, tornando-se predadores improváveis desses répteis e protagonistas de um dos embates mais fascinantes da natureza.
Mas o que os torna imunes a essas toxinas? E como seu apetite variado – que inclui frutas, insetos, pequenos vertebrados e até serpentes – os transforma em verdadeiros aliados da natureza e dos humanos?
Ana Paula Carmignotto, doutora, professora pela UFSCar de Sorocaba e especialista em mamíferos marsupiais, explica que a resistência dos gambás ao veneno das serpentes pode ocorrer a partir de dois mecanismos diferentes.
“A resistência dos gambás ao veneno de serpentes pode ocorrer por dois mecanismos: mudanças estruturais nos receptores que se ligam às toxinas do veneno ou a presença de inibidores e/ou neutralizantes dessas toxinas no plasma, soro ou músculos. Esses mecanismos impedem a coagulação do sangue desses animais quando em contato com o veneno de jararacas, cascavéis e surucucus, tornando estas espécies resistentes ao veneno”, explica a especialista.
Com o tempo, a relação entre gambás e serpentes evoluiu para um verdadeiro duelo biológico. Enquanto as cobras desenvolveram venenos cada vez mais potentes para tentar neutralizar seus predadores, os gambás aprimoraram seus mecanismos de defesa, tornando-se progressivamente mais resistentes. Esse fenômeno, conhecido como “corrida armamentista evolutiva” pelos cientistas, demonstra como a natureza molda as espécies ao longo do tempo, levando à adaptações impressionantes.
Na década de 90, pesquisadores do Instituto Butantan decidiram testar essa teoria na prática. Em um experimento conduzido no Laboratório de Biologia Estrutural, especialistas recolheram gambás da Mata Atlântica (Didelphis aurita) e os colocaram em ambientes controlados.
Gambá-de-orelha-preta (Didelphis aurita) foi recolhido para ser usado em experimento realizado pelo Butantan
Natan Périco/iNaturalist
Foi então que os cientistas introduziram jararacas (Bothrops jararaca) no ambiente. O resultado surpreendeu: sem hesitar, os gambás partiram para cima das serpentes, utilizando seu olfato aguçado para localizá-las, especialmente pela cauda, onde iniciavam suas mordidas. Enquanto isso, as cobras tentavam revidar, desferindo múltiplas picadas. No entanto, o veneno não surtia efeito e os gambás seguiam devorando suas presas sem qualquer sinal de intoxicação.
Para verificar se essa proteção era inata ou aprendida, os pesquisadores repetiram o experimento com filhotes de gambás e jararacas recém-nascidas. O comportamento foi idêntico, confirmando que a resistência ao veneno e a habilidade de caça são características geneticamente incorporadas na espécie.
Curiosos para entender os limites dessa imunidade, os cientistas do Butantan realizaram outro teste, dessa vez colocando gambás da Mata Atlântica em contato com cascavéis (Crotalus durissus), típicas do Cerrado e da Caatinga. Embora os gambás tenham conseguido devorar até cinco cascavéis sem apresentar qualquer sinal de intoxicação, ao serem picados pela sexta serpente, começaram a demonstrar efeitos do veneno, como perda de equilíbrio.
Cascavel-sul-americana (Crotalus durissus)
AJDeberdt/iNaturalist
A conclusão foi clara: os gambás são altamente resistentes ao veneno das cobras com as quais coexistem – as chamadas espécies simpátricas –, mas essa imunidade não é absoluta contra serpentes de outros biomas. Esse achado reforça a complexidade da evolução e sugere que o próximo passo seria investigar como gambás do Cerrado se comportariam ao enfrentar jararacas da Mata Atlântica.
O que esses estudos deixam evidente é que os gambás, muito além de seu papel como predadores naturais de cobras, são exemplos vivos de adaptação e sobrevivência. Além da impressionante resistência ao veneno de cobras, os gambás desempenham um papel fundamental na manutenção do equilíbrio ecológico e, consequentemente, trazem benefícios diretos e indiretos aos seres humanos.
Com uma dieta extremamente variada, que inclui frutas, insetos, ovos, pequenos vertebrados, incluindo as serpentes, eles atuam como verdadeiros agentes de controle biológico. Há registros também de predação de morcegos, outros marsupiais, pequenas aves, anfíbios (sapos, rãs ou pererecas) e répteis (pequenos lagartos).
Os gambás se alimentam de frutos e podem ser importantes dispersores de sementes, auxiliando na regeneração de florestas, por exemplo. Como se alimentam também de insetos, podem consumir espécies nocivas aos humanos, como aranhas, escorpiões, carrapatos, auxiliando a reduzir a abundância destes insetos localmente, atuando no controle de pragas. Também é um importante reservatório de parasitas e vírus e pode ser usado para entender melhor o ciclo epidemiológico de certas doenças, em especial da Leishmaniose e doença de Chagas
Ana Paula explica que, no Brasil, existem 69 espécies de marsupiais, conhecidos popularmente por gambás, cuícas ou catitas. Dentre estas, apenas 11 espécies possuem esta resistência, incluindo os gêneros Didelphis (gambás), Philander (cuíca-de- quatro-olhos) e Lutreolina (cuíca-de-cauda-grossa). Todos eles pertencem à tribo Didelphini, parte da família Didelphidae.
Mundo afora, existem pelo menos 48 espécies de mamíferos que predam serpentes e que tem imunidade ao veneno, incluindo o gambá e o texugo na América do Norte, algumas espécies de marsupiais na Austrália, o ouriço-comum e o texugo na Europa, espécies de mangustos na Ásia e o texugo-do-mel, a doninha-das-costas-listrada e espécies de mangustos na África.
Gambás
Existem atualmente 4 espécies de gambás no Brasil: o gambá-de-orelha-preta da Amazônia, o gambá-de-orelha-preta da Mata Atlântica, o gambá-de-orelha-branca que ocorre na Caatinga, Cerrado, Pantanal e Pampas, e o gambá-de-orelha-branca da Amazônia, que o ocorre na porção norte da Amazônia.
Esses animais são mais comuns em áreas rurais, mas podem ocupar áreas urbanas próximas de pequenos fragmentos de vegetação nativa, como parques urbanos e condomínios ou casas com áreas naturais.
Gambá-de-orelha preta é uma das quatro espécies que ocorrem no Brasil
Henry Stranz / Projeto Dacnis
Além da impressionante resistência ao veneno de cobras, os gambás desempenham um papel fundamental na manutenção do equilíbrio ecológico e, consequentemente, trazem benefícios diretos e indiretos aos seres humanos.
As principais ameaças à sobrevivência dos gambás são a perda, fragmentação e conversão de seus hábitats naturais. A caça para consumo humano também pode prejudicar algumas populações.
“Apesar dos gambás emitirem um som de ameaça quando intimidados, ou se fingirem de mortos, eles geralmente querem apenas fugir. Então ao ver um animal se aproximar, não toque no animal, pois ele pode morder e transmitir doenças. Apenas dê espaço para que o mesmo possa correr para fora, ou direcione o animal para fora de sua residência. Caso o animal esteja machucado ou tenha se escondido no interior da residência, pode acionar a polícia ambiental ou o centro de controle de zoonoses de sua cidade. Caso o animal tenha defecado ou urinado, desinfete o local com água sanitária”, orienta a especialista.
*Texto sob supervisão de Lizzy Martins
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